Saíle Bárbara Barreto
Quem costuma, ou melhor, quem costumava viajar para o exterior, antes desta pandemia nos deixar isolados, sabe como em outros países, principalmente nos europeus a memória cultural é preservada. E com orgulho.
Quem já teve oportunidade de sair do Brasil, já deve ter percebido como (lá fora) fazem questão de não esquecer a história e seus artistas. Como valorizam a escrita. Já nas bandas de cá, infelizmente, escrever. Ah, escrever... nunca foi fácil. Tampouco advogar.
E que o diga Monteiro Lobato. Em Cartas Escolhidas, uma coletânea maravilhosa da correspondência pessoal dele, uma preciosidade que encontrei em um sebo no centro de Floripa, li um trecho muito curioso. Ele, que era as duas coisas (advogado e escritor) estava inconformado com o pouco que ganhava. Escreveu ao amigo Heitor:
"É pena que literatura não seja mercadoria aqui entre nós, porque nós que não sabemos cavar com a enxada, nem temos balcão, vermos a única produção de que somos capazes, dar menos resultado pecuniário do que o arroz, o milho e o toucinho. Ando inteirado desta vida e, qualquer dia – já o disse à Purezinha (apelido carinhoso que ele usava quando se referia à esposa) – dou uma banana ao bacharelato, outra ao Washington Luís (presidente da república da época) e vou abrir uma venda (...)"
O ano era 1909. Lá se vão 112 anos e o conhecimento jurídico, assim como a cultura em geral, ainda valem bem menos que toucinho.
Não estou me comparando a este grande autor. Longe disso! Eu me enxergo. Monteiro Lobato, o criador do Sítio do Pica-Pau-Amarelo, que até preso esteve por três meses (em 1941 por criticar o governo de Getúlio Vargas) era um gênio. Quem me dera! Jamais chegarei aos pés dele. Só tenho pelo colega advogado/escritor imensa admiração. E um alguma identificação. Na verdade, muita. Sou uma de suas milhares de fãs (apesar da Cuca, aquele monstro que atormentou minha infância).
Pois bem. No último recesso forense, sem prazos, sem poder viajar e sem praia. Sim, estou branca como numa cera, resolvi escrever mais um livro. Meu quinto: Causos da Comarca de São Barnabé. Ele está à venda na forma digital na Amazon e o físico eu mesma vendo em minhas redes sociais (Instagram: @advogadaestressada e Facebook: Diário de uma advogada estressada) já que minha experiência com editoras nunca foi das melhores e, assim como na advocacia, como escritora também parti para carreira solo há alguns anos.
O livro é uma sátira ao Brasil, ao Poder Judiciário. Ao mar de lama que nos oprime, advogados e cidadãos brasileiros. E narro (com humor bem ácido) vários fatos fictícios, inspirados coisas que vivenciei, que li, que senti. Principalmente, durante este “novo normal” que não acaba nunca.
No preâmbulo, que vou citar um trechinho, tive a “audácia” de escrever:
“Tudo acontece na comarca de São Barnabé. Esquecida pela corregedoria do Tribunal de Justiça de Santa Ignorância, Estado da República Federativa da Banalândia. Um país ao sul da linha do Equador em que não se conhece o significado da palavra democracia.
O fórum é pequeno, porém, muito bem localizado, em frente ao maior shopping da cidade. O prédio possui a arquitetura mais horrenda do país e também é contemplado com figuras folclóricas que trabalham pela distribuição da justiça (aos mais ricos, é claro). ”
E fui denunciada, senhoras e senhores. Sim. O Ministério Público Estadual recebeu uma representação de um juiz da comarca, devidamente avalizada pela AMC (Associação dos Magistrados Catarinenses) e ofereceu denúncia por calúnia, injúria e difamação, sob o argumento de que tal juiz, cujo nome não posso mencionar, sob pena de multa é de mil reais o dia, além de outras medidas cautelares que podem ser decretadas, leia-se privação da minha liberdade (PRISÃO) porque tal senhor acredita piamente ser meu “muso inspirador.”
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Além disto, o magistrado pede uma indenização pelo “abalo moral” que alega estar suportando, na “bagatela” de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Pediu segredo de justiça nas ações. Conseguiu.
No processo penal foi levantada, um tempo depois, mas, o cível, ainda corre em sigilo. E como corre! Jamais em 18 anos de advocacia (como estou velha) protocolizei (odeio esta palavra) uma ação e em menos de dez dias, o réu já havia sido citado e dois desembargadores despachado um agravo. Nem em processos de idosos. Coitados dos idosos.
Pausa para um grande suspiro. Ai ai ai....
O que posso dizer mais? Vivemos mesmo não em uma comarca, mas, em um país de barnabés. Não preservamos nossa cultura. Aliás, ninguém mais lembra do Barnabé? Aquele famoso comediante dos anos 70, cujos causos abundam no YouTube? Eu lembro. São bem engraçados. Espiem.
Ninguém se deu ao trabalho de verificar o que tal expressão (barnabé) remete a ingenuidade e a caipirice também. Apenas viram um MM juiz como autor e “tocaram ficha.”
O nome do vilão rima com o seguindo nome dele! Oh! O nome do livro rima com o nome da comarca em que a escritora e editora estão registradas (São José)! Oh! Ela uma vez reclamou dele na corregedoria! Que ousadia! É crime, só pode ser crime! E vamos fazer tudo em “segredo de justiça!”
Pois é. Se não vivêssemos no Brasil. Se isto aqui fosse realmente uma democracia, como são os EUA, em que John Grisham faz exatamente a mesma coisa (e ganha uma fortuna) não seria necessário tecer grandes comentários. A suprema corte jamais daria guarida a uma aberração jurídica como esta.
Aqui é necessário dizer. Do jeito que dá de relatar (para evitar a fadiga e a multa). O nome do vilão (podem espiar no livro, as 10 primeiras páginas estão na Amazon como amostra grátis). Vão ver que é uma mistura de Benito Mussolini, Floriano Peixoto e Riobaldo do Grande Sertão: Veredas.
Seria muito esperar que lembrassem? Penso que não. Se estudassem história e literatura. Só quase ninguém gosta de disso. Literatura nacional ainda? Torcem o nariz. Em cada livraria há apenas uma mísera prateleira com livros de autores nacionais. E olhe lá. Já perceberam? Se encontrarem alguma aberta (estão todas fechando). Pois é.
Ai de quem se aventurar a escrever livros e alcançar público neste país. Em vez de prêmios, sempre foi e, ouso dizer, pelo andar da carruagem (que ainda é um carro de boi) sempre será contemplado com citações, ameaças de prisão e muita, mas muuuuuita dor de cabeça.
Monteiro Lobato tinha razão: qualquer hora dou uma banana ao bacharelado e vou abrir uma venda, ou uma casa de pão queijo no aeroporto (que é mais atual) e rentável.
Que a Deusa Themis tenha piedade de nós.
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