Quando os Novos Baianos - atualmente representados por Baby do Brasil, Pepeu Gomes e Paulinho Boca do Cantor - subiram ao palco do Coala Festival no dia 16 de setembro de 2023 para mais um reencontro parecia estar tudo tinindo com o grupo. No palco, de fato, estava. Os três ainda preservam o espírito livre inovador do sítio de Jacarepaguá onde eles jogavam bola e faziam música. Entretanto, nos bastidores, algo já soava fora do tom, com relações trincando.
A dissonância partia da família do poeta Luiz Galvão (1937-2022), o mais velho dos Novos Baianos, e o cérebro de letras como Preta, Pretinha, Tinindo, Trincando, Mistério do Planeta e A Menina Dança, os principais sucessos do grupo.
Em um vídeo publicado recentemente no perfil dedicado a Galvão no Instagram, Janete Galvão, viúva do letrista, aparece para dar uma "satisfação" aos fãs que a questionavam por estar promovendo um financiamento coletivo para reeditar os livros escritos por Galvão.
"As pessoas podem pensar: fizeram tantos shows, têm tantas músicas gravadas, e estão nessa situação", começa Janete. A partir daí, em um desabafo de 15 minutos, ela detalha o que, na visão dela, prejudicou a vida financeira de Galvão, a partir de um retorno dos Novos Baianos, em 2017.
De acordo com Janete, os Novos Baianos foram procurados pela Secretaria de Cultura da Bahia para fazer o show de reabertura da Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. A condição colocada por Jorge Portugal, Secretário de Cultura à época, era a de que os cinco novos baianos estivessem juntos, e não apenas alguns deles.
De fato, quando o Estadão entrevistou Baby, Pepeu e Paulinho dias antes da apresentação no Coala, durante um ensaio, Baby fez menção à rusga entre Pepeu e Moraes - que foi o primeiro a sair do grupo, em 1974. "Convenci o Moraes de que Pepeu não iria tocar a guitarra mais alta do que a dele", disse, bem humorada.
Segundo Janete, em 2017, Moraes mudou de ideia após Galvão sofrer um infarto, quatro meses antes do show contratado para a Concha, mas colocou a condição de que o colega recebesse o cachê do show, participasse ou não - o poeta participou.
Ainda de acordo com Janete, o contrato entre o estado da Bahia e o grupo foi firmando por meio da empresa de Baby. A viúva de Galvão diz que Baby não quis prestar contas de receitas e despesas e pagou o quanto quis a cada membro do grupo.
Logo em seguida, Baby, segundo Janete, teria se colocado à frente de um contrato com a produtora T4F para shows e, posteriormente, com a gravadora Som Livre para a gravação do CD e DVD Acabou Chorare - Novos Baianos se Encontram. Ainda segundo a fala de Janete, tudo foi firmado com a empresa de Baby, que ficou com 10% do montante pago, cerca de R$ 240 mil. "Ela ganhou mais do que todo mundo", diz.
A reportagem do Estadão enviou três mensagens para Baby, uma em seu perfil no Facebook e duas no e-mail indicado em seus perfis nas redes sociais, mas não obteve resposta. Também procurou o escritório de advocacia que representou Baby no pedido de registro de Acabou Chorare, mas recebeu a resposta de que o escritório não patrocina Baby no processo movido pela família de Galvão. O espaço segue aberto.
"Ela pegou a assinatura de Galvão e ele nem estava mais em condições de assinar nada. Éramos eu e os filhos que estávamos assinando os contratos porque ele já estava com a memória um pouco comprometida", diz Janete.
Janete acusa Baby de ter pago um cachê de R$ 1.400 para cada um depois de uma apresentação. "Moraes devolveu. Achou tão absurdo porque o show dos Novos Baianos era vendido por R$ 300 mil". O Estadão apurou que, de fato, esse foi o valor total que o grupo recebeu pela apresentação no Coala.
Baby registrou sozinha nome da banda e tentou registrar nome de música
Janete também afirma que o nome Novos Baianos foi registrado por Baby em 2018 e que posteriormente ela tentou registrar o nome Acabou Chorare, título da música composta por Galvão e Moraes que dá nome ao álbum mais famoso do grupo, lançado em 1972.
De fato, o registro da marca 'Novos Baianos' no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) tem como único titular Baby do Brasil. O pedido foi feito por Baby em 2018 e entrou em vigor em 2019, aponta o site do INPI.
O mesmo site aponta que a cantora também tentou registrar a marca 'Acabou Chorare', mas o pedido foi arquivo em definitivo pelo INPI em abril de 2019. Uma das justificativas para o arquivamento foi a de que "não são registráveis como marca: obra literária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos pelo direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo com consentimento do autor ou titular". A música Acabou Chorare foi composta por Galvão e Moraes.
Janete Galvão diz que "não tem medo" sobre as acusações que faz, pois tem provas. "É mentira, falcatrua, golpe, engano...". A viúva do letrista termina o relato dizendo que a família passa por dificuldades. Ela faz camisas para vender e recolheu alguns livros de Galvão em sebo para tentar negociá-los por um bom preço.
Advogada da família Galvão detalha processo
No desabafo que fez nas redes sociais, Janete Galvão diz que a advogada Deborah Sztajnberg, da Debs Consultoria, cuida do processo contra Baby. "Eu quero justiça e receber o que Galvão construiu. Ele dedicou 50 anos da vida dele aos Novos Baianos".
A reportagem entrou em contato com a advogada, que confirmou a ação que corre na 44ª Vara Cível da Justiça do Rio de Janeiro. Segundo documentos judiciais consultados pelo Estadão, o processo é contra Baby e contra a empresa Baby do Brasil Produções Artísticas Limitada, que está no nome de Baby do Brasil e de Krishna Baby Cidade Gomes, filho de Baby e Pepeu. A empresa tem sede no Rio de Janeiro.
Entretanto, ao Estadão, a advogada Deborah Sztajnberg afirma que o processo também é contra Pepeu Gomes e Paulinho do Cantor. A reportagem entrou em contato com a empresária de Pepeu, Simone Sobrinho, mais de uma vez, mas não obteve resposta. Já o escritório artístico que representa Paulinho disse que o cantor está viajando e sem sinal de celular. O espaço segue aberto.
Segundo Deborah, especialista em direito autoral, esse tipo de imbróglio é muito comum entre bandas que decidem retornar. E, nesses casos, sempre há discussão de direitos entre os membros fundadores. A falta de contrato é algo recorrente, o que leva à judicialização dos casos.
"Esse pessoal da antiga, quando formava grupos, era sempre tudo solto, livre, no tempo do paz e amor. Depois, você cresce, tem filho, imposto para pagar. Aí é preciso se organizar, até para deixar tudo estruturado para os herdeiros", diz a advogada, que lida com essa área há quase 40 anos.
Para Deborah, a partir de 2017, quando os membros perceberam que os Novos Baianos ainda renderiam bons projetos "cresceu-se o olho sobre isso". "Divergências do passado vem à tona. E isso se reflete na parte patrimonial e de conduta", diz.
Deborah admite que Galvão assinou os documentos apresentados por Baby, mas diz que se tratava de um adiantamento de despesas. Isso, segundo ela, está sendo contestado na Justiça, bem como o registro da marca. "Quando a pessoa está sem dinheiro, precisando de remédios, cai em qualquer lábia. É o fator desespero", diz.
A advogada afirma que a saúde de Galvão piorou quando ele descobriu que "foi passado para trás". Galvão morreu em outubro de 2022, aos 87 anos, em São Paulo. Na época, ele deu entrada na Santa Casa de Misericórdia com suspeita de hemorragia gastrointestinal. Posteriormente, foi transferido para o Instituto do Coração, também na capital paulista, onde morreu.
Quando a reportagem do Estadão conversou com Baby, Pepeu e Paulinho às vésperas da apresentação no Coala Festival, os três novos baianos remanescentes citavam a todo momento os nomes de Galvão e Moraes.
Entretanto, do lado de fora do estúdio onde a entrevista foi realizada, a reportagem presenciou uma conversa entre membros da produção que afirmavam que "os filhos de Galvão e de Moraes" estavam questionando essa nova reunião dos Novos Baianos.
O Estadão procurou Davi Moraes, filho de Moraes Moreira, para saber se a família também pretende processar Baby, Pepeu e Paulinho, mas não obteve resposta.
Para Deborah, apenas reverenciar os antigos companheiros não é suficiente. Segundo seu entendimento, todos os ganhos gerados pela marca Novos Baianos deveriam ser divididos em cinco partes iguais, mesmo que Galvão e Moraes não estejam mais vivos.
O processo ao qual o Estadão teve acesso, iniciado em setembro de 2022, antes mesmo da morte de Galvão, tem valor inicial da causa de R$ 100 mil. Porém, Deborah afirma que, a pedido do juiz, o valor passou para R$ 1 milhão. Como as planilhas da turnê não foram abertas, não é possível dizer o valor final que estará em disputa.
A defesa de Galvão pleiteia, além da nulidade dos documentos que cederam a marca para Baby, que os herdeiros de Galvão recebam por tudo o que for gerado pela marca Novos Baianos, a revisão planilha dos repasses de cachês desde 2016.
A Justiça ainda não conseguiu citar Baby, Pepeu e Paulinho. "Se continuar assim, se eles continuarem se ocultando, terei que pedir medidas de maior rigidez", diz Deborah.
Tanto Janete Galvão quanto Deborah Sztajnberg afirmam que a turnê Novos Baianos - 50 anos de Acabou Chorare, iniciada neste ano em no Coala, foi cancelada. No entanto, o perfil de Pepeu está divulgando pelo menos três datas de apresentações para 2024.
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